domingo, 22 de junho de 2014

Elogio da impassibilidade

O suspense, a expectativa, os sustos, a angústia, as frustrações de assistir a um jogo de futebol têm uma certa equivalência aos prazeres da melancolia. Com a diferença de que no futebol ninguém suporta perder e na melancolia isso está implícito. Tive estes pensamentos enquanto antecipava gostosamente uma noite de mortificação em frente à TV, mas amigos muito mais ligados ao futebol do que eu dizem-me coisas como: «hoje, torcer pela selecção é mais ou menos como torcer pelos banqueiros, torcer por um negócio de outros que circunstancialmente são nossos compatriotas e usam as nossas cores». Postas as coisas nestes termos, se assistir ao jogo, fá-lo-ei de modo clandestino, anelando patrioteiramente (e por traição de classe) a vitória e reconhecendo maior justeza social na derrota.
Devo confessar ainda que a derrota me é mais conveniente também porque tenho ouvidos sensíveis e uma certa aversão estética a desfiles de carros buzinando inglória e jactantemente, como limusinas em Adis Abeba.
Ah, que saudades de sermos o povo melancólico que às vezes dizem sermos, impassível na vitória como na derrota.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O Tua e a sua canção (ou)vistos pela nova direita

Um grupo de artistas dedicou uma canção ao Tua. A Helena Matos já deverá estar a escrever no pravda da nova direita um artigo a defender que se afogue não só o vale como os artistas. Se faltavam motivos para construir a barragem, dirá ela, agora temos um. João Miguel Tavares, pelo seu lado, pessoa sensível, aumentará o caudal do Tua com uma lágrima ou duas pelo vale e pelos artistas, mas lembrar-lhes-á a sua culpa por canções e paisagens belas serem actividades condenadas num Portugal falido.
Pedro Lomba dirá num briefing falhado que os artistas deviam era estar a contribuir para a demografia fazendo filhos enquanto a água não os cobre. Poiares Maduro tentará tirar-lhes o subsídio de férias e Passos vender-lhes uma formação em aeronáutica que lhes permita emigrar a partir de qualquer aeródromo das redondezas. Que os há-de haver.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Lição n.º 1

Muitas pessoas (e tantas delas são gente da informática ou das novas tecnologias) pensam que regras e convenções da escrita são uma espécie de capricho de gente conservadora, quando não uma demonstração de intolerância ou fascismo em relação a quem tem uma atitude mais «descontraída» com a língua e a escrita. Suponho que essas pessoas lêem pouco, ou apenas lêem o que escrevem. Ou ignoram regras e convenções quando escrevem porque na verdade se estão nas tintas para quem as vai ler.
O problema é quando algumas destas pessoas escrevem textos que, por uma razão ou outra, nos vemos forçados a ler. A sua forma «descontraída» de escrever geralmente significa que nós não vamos ter uma leitura descontraída, mas trabalhosa, aborrecida, tentando decifrar a sintaxe para conseguir chegar à semântica. Irrita-me quando antes de perceber a ideia ou argumento tenho de parar para perceber a frase. E irrito-me mais quando, depois de finalmente perceber a frase, descubro que não há uma ideia ou argumento (o que também é frequente).
Os praticantes desta «escrita descontraída», mesmo que pensem o contrário, são meros principiantes das letras e da comunicação. Não se relacionam suficientemente com a língua e a linguagem para perceber duas coisas:
1) Que as frases que escrevemos saíram da nossa cabeça e, por isso, somos capazes de entender facilmente um texto nosso, mesmo que ele esteja descuidado, mal pontuado, sem acentos e que ao escrevê-lo lhe tenhamos comido uma parte das palavras. Quem alguma vez se deu ao trabalho de rever a sério o que escreve sabe que é assim.
2) Aquilo a que noutros escritores chamamos de «escrita simples» é geralmente uma escrita bastante trabalhada — e que não ignora regras e convenções. Este tipo de «escritores simples» trabalha arduamente os textos para que a comunicação resulte límpida, transparente, sem dar trabalho desnecessário ao leitor (a não ser o que resulta da compreensão das ideias expressas).
Meus amigos: aspas, acentuação, vírgulas, pontos, travessões, itálicos (em estrangeirismos e títulos, por exemplo), concordância em género e número, correcta conjugação e aplicação de verbos, escolha rigorosa de adjectivos, etc. não são coisas antiquadas, desnecessárias, descartáveis. Não são, sequer, caprichos estilísticos de escritor. São a essência formal da comunicação escrita. Se não têm nada a dizer, não escrevam. Se acham que têm alguma coisa a dizer, lembrem-se que estão a escrever para seres que não convivem intimamente com os macaquinhos que vocês têm no sótão.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Love and War(paint)

Estas meninas já nos brindaram (à geração de 80) com uma bela versão de "Ashes to ashes" (Bowie) e agora têm o bom gosto de atacar "The Chauffeur" (Duran Duran). Conhecendo também os seus originais, só se pode amá-las. 

https://soundcloud.com/manimal-vinyl/warpaint-the-chauffeur-1/s-FYTII

Problemas de habitação, no centenário de Sarajevo

No Verão de 2012, o jornalista Tim Butcher foi às profundezas da Bósnia-Herzegovina procurar a casa de Gravilo Princip, o assassino do arquiduque Francisco Fernando da Áustria. Quando encontra o que resta dela, pensa:

«Aquilo era uma casa europeia habitada por uma família inteira no início do século XX, mas fazia-me lembrar as choupanas com que me deparava frequentemente na África rural. O princípio era exactamente o mesmo: um chão de terra batida numa habitação construída com paredes de pedra, sob um telhado feito de madeira, colmo ou ramos apanhados localmente. Uma taxa de mortalidade infantil que podia matar seis dos nove filhos da família Princip soava mais a África do que a Europa. O mundo desenvolvido podia desesperar perante os problemas sistémicos da África moderna, mas estar ali, naquele jardim de Obljaj, ensinou-me como grande parte da Europa estivera recentemente em situação similar.»*

Duas décadas depois da morte de Gravilo, a minha mãe crescia numa casa similar à do sérvio-bósnio que serviu de gatilho à Primeira Guerra Mundial. Um compartimento de terra batida para a família, um compartimento adjacente com chão de carquejas para o gado. Como Gravilo, a minha mãe cuidou dos animais em criança, afastou lobos com paus e pedras. Não abateu nenhum arquiduque no final da adolescência, mas um dos seus filhos escreveu um romance onde se fala de «terrorismo inteligente».

Descontada a boutade pateta, há decerto uma maldição sobre domicílios impróprios. Resolver problemas de habitação é talvez um bom exorcismo para casas-assombradas. A Europa devia lembrar-se.  

* A partir do muito interessante excerto de O Gatilho, de Tim Butcher, publicado na LER de Junho.

Golo da Costa Rica

Não foi uma excentricidade como ir ao Solar Transmontano, mas perdi a cabeça e gastei doze euros numa churrasqueira. Por vezes, o bilhete para observar a vida selvagem sai caro.
O empregado perguntou-me o que estava a achar do Mundial e eu não dei parte de fraco: aqueles cinco a um da Espanha eram qualquer coisa… Passei no teste sem ter de explicar que coisa eram os cinco a um. De seguida chamaram-no a outra mesa e também não tive de opinar sobre o Uruguai x Costa Rica que se disputava no plasma (cujo resultado tinha espreitado preventivamente enquanto ele falava e sobre o qual estava a tentar pensar o que haveria de expectável a dizer).

Os clientes também podem ser constrangedores, quando são conhecidos do pessoal. Uma das cozinheiras passa a caminho da casa de banho mas é detida por umas perguntas e considerações mundanas da mãe de duas crianças do outro lado da sala. A cozinheira, não contando demorar-se, fica a três quartos, com um pé no ar, respondendo pelo canto da boca e pronta a continuar o seu caminho. Todavia, a cliente tem sempre mais uma coisa para dizer e a cozinheira, indecisa entre a delicadeza e a urgência, naquela postura de quem só ouvirá mais uma frase e continuará a andar, vai deixando os pés para trás e inclinando o corpo na direcção que pretende seguir. Estão nisto mais um longo minuto e eu preparo-me para amparar a cozinheira, que está mesmo no limite da sustentabilidade da sua posição. Mais uma frase da cliente e a queda é irreversível, foi atingido o ângulo máximo de inclinação que um corpo humano consegue atingir sem se estatelar. Por fim ouve-se uma interjeição telepática e a cozinheira dá o seu passo em frente, aquele passo que suspendera antes, e deixa a cliente a falar para a abertura que dá para o hall dos lavabos. Esta resigna-se, dá um safanão numa das crianças e comenta para o garçon que o golo da Costa Rica foi mesmo um grande golo.

domingo, 15 de junho de 2014

Cristo sinaleiro

Cristo persegue-me (quando devia talvez ser o contrário, eu ir-lhe na peugada com veneração e toga de discípulo). Hoje postou-se-me a meio de uma bifurcação de estradas e, com aqueles seus braços permanentemente abertos, a apontar uma coisa e o seu contrário, fiquei sem perceber se me aconselhava a direita, se a esquerda. Como sinaleiro, tem muito a aprender. Nem deviam, aliás, autorizá-lo a exercer (mas neste país uns são filhos de deus, outros...).
A certa altura mais carente da viagem (havia uma recta de uns setenta metros antes de ter de escolher), achei que ele abria os braços mas era para me abraçar e fiquei tentado a ir em frente, entregar-me ao amplexo cristão com Chevrolet e tudo. Travei antes do muro.

(E ao passar-lhe ao largo devo dizer que me pareceu mais o Roger Hodgson do que o Cristo: ou há um culto novo na cidade ou anda alguém a brincar com os moldes.)  

sábado, 14 de junho de 2014

Diagnóstico

Vi agora mesmo um cartoon que pretendia representar o individualismo e na verdade representa o egoísmo. Dizem que os portugueses estão mais individualistas. É mentira. Os portugueses estão é mais egoístas. Só pensam em si, mas não pensam por si.
Os portugueses não estão (nem são) individualistas, não se afirmam senão em grupo, não têm iniciativa própria nem reclamam liberdade individual. Os portugueses são tão individualistas quanto carneirinhos em rebanhos. Amam o pastor por síndroma de Estocolmo e o cajado por morbidez do espírito.

(Que o dicionário confunda individualismo com egoísmo é um arcaísmo idiota, que ignora a Renascença e toda a filosofia subsequente.)


LER

Durante anos, uma das minhas maiores alegrias era folhear jornais e revistas novos ou reformulados. Gostava tanto de bons textos quanto de bom (e novo) grafismo. Por isso não resisti à extravagância financeira de comprar a “nova” LER. (Há leitores deste blogue que julgam ser uma boutade o meu lamento por no último ano e picos não ter estado à altura dos cinco euros da revista. Pois saibam que hesitei em pagar o euro extra que agora custa e me não estava a ser pedido pela tabacaria, cujo sistema informático ainda considerava o preço antigo. Fui honesto, alertei o funcionário — e vim todo o caminho a chorar a minha inadequação idiossincrática ao capitalismo sem pruridos ora vigente. Sou um cândido.)
Lá dei os seis euritos, portanto, apaziguando-me com a ideia que seria um luxo trimestral que a troika certamente toleraria. O regresso à trimestralidade está, de resto, também de acordo com a minha actual disponibilidade de tempo (disputada, contudo, pela Granta, cuja assinatura um anjo partilhou comigo).
Bem, queria era dizer que gostei bastante desta LER (estava só a ver se adormecia os editores antes de chegar aqui, mas talvez nem fosse necessário, estão certamente distraídos com o Mundial). Ao pegar-lhe senti o mesmo tipo de textura, maleabilidade e excitação que sentia há trinta anos com um Disney Especial — e isto é um elogio.

Depois vou ler.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Profissão de (pouca) fé

Há quem ponha águias, gnomos, leões, sereias, querubins, senhoras-de-fátima ou cristos-redentores. O kitsch na estatuária doméstica não tem limites e o jardim de uma vivenda é, para mal da vizinhança, propriedade privada.
Mas se o jardim se transforma em horta, por força do “ajustamento”, o que passa a ser um cristo de braços abertos ali plantado? Uma confissão de impotência ou um aggiornamento? Talvez uma resignação: na impossibilidade de expulsar os vendilhões do templo, o filho de deus gosta de se saber útil a espantar os pardais do quintal. É isso ou o desemprego.

[Visto mas não fotografado, ao contrário desta outra aparição, que teve direito a post e foto:]

O fanico de Cavaco

Aprendi a certa altura que não se goza com as características físicas das pessoas. O debate público é acerca de ideias ou actos, não de deformidades. Uma corcunda ou um penteado ridículo não transformam em mentira ou erro as afirmações de quem os padece. A beleza e a feiura, como a saúde e a enfermidade, a inteligência ou a mediania, não fazem boas ou más pessoas.
Caricaturar o outro a partir dos seus defeitos ou padecimentos físicos é, portanto, recurso dos pobres de espírito ou daqueles a quem escasseia talento para mais. É humor que as tascas aceitam (porque aceitam tudo), mas delas não devia sair.
Dito isto, se me parece errado desejar que o fanico de Cavaco Silva seja consequente, não vejo por que a ocorrência (a quase queda) não possa ser invocada em frases irónicas sobre o seu mandato enquanto presidente ou sobre o regime que ele representa. Podemos desejar a máxima saúde para o cidadão Cavaco Silva — mas agradecer que ele a vá gozar por muitos anos longe de Belém.

De resto, depois de, por exemplo, a sua tirada sobre a reforma que aufere, a empatia que as pessoas eventualmente sintam pelo ser humano que ele é será sempre mérito da bondade delas — nunca efeito dos actos dele.
Cavaco, devemos reconhecê-lo, é um homo sapiens — não um santo. Tem direito a misericórdia — não devoção.

A menina de óculos

Saltitante como um cachorrito, acompanha os pais numa caminhada ao fim da tarde. A figura de alguém que lê um livro num banco à margem do caminho prende-lhe de súbito o olhar. Não ao ponto de a fazer perder a oportunidade de pisar ritmadamente as pedras que enterraram no percurso a fingir de pegadas de animais. Mas, cumprido o gostoso exercício, volta a observar o leitor enquanto passa por ele. Uns metros depois, não resiste a virar-se para trás e dar uma última espreitadela. Os óculos de massa apoiados no narizito parecem assegurar-lhe um perfil de leitora precoce e cúmplice que acabou de reconhecer um par. Porém, as aparências demasiadas vezes enganam: talvez seja apenas uma criança que acabou de ver uma bizarria. Ou talvez o paralelo canino seja acertado e, como todas as crias de mamíferos, está apenas a cartografar intensa e francamente o mundo, ainda desconhecedora das convenções adultas sobre o olhar.

Eu próprio transgressor, pisquei-lhe — e ela sorriu. Não digam a ninguém.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Bombos

[Para os patriotas que se entusiasmaram com o post anterior]

Observando desfiles populares noutras paragens geográficas, somos forçados a concluir com melancolia que, como povo, nem para descer alegre e ritualmente as ruas temos jeito.
As formações “musicais” mais requisitadas para arruadas nesta zona do globo são as de Zés Pereiras, ou equivalentes. O facto de serem constituídas apenas por percussionistas não seria um mal, se colmatassem a falta de instrumentos melódicos e harmónicos com virtuosismo técnico, variedade e complexidade rítmicas, originalidade de composições, brilho coreográfico, ousadia e destreza física ou elegância de trajes.
Mas não. A popularidade destas formações dá-se provavelmente porque, não necessitando de ponta de génio ou talento, são baratas — e sendo baratas são a desculpa adequada para instituições medíocres e desinteressadas de chamar talento ou génio para as suas cerimónias e festividades.
Acresce que para instituições e um povo do calibre dos nossos, o talento, mesmo que só para o fagote ou a gaita-de-foles, é um distintivo de “elite”, essa ameaça à mediania fundacional da pátria.


P.S. Além dos bombos, o único instrumento que a raça genuinamente ama (pela sua democraticidade, ou seja, por qualquer burro poder tocá-lo) é o triângulo (ou ferrinhos), esse objecto que só em mãos brasileiras ganha qualquer relevância musical.

Aufklärung – a semântica do iluminismo alemão

Leio que o termo alemão para iluminismo é «Aufklärung». E orgulhosamente concluo que o povo germânico importou daqui as luzes. «Aufklärung» é resultado de um adido ou embaixador ter acrescentado o prefixo canino-teutónico «auf» ao étimo portuense «clarão» (dito com sotaque).

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Mau augúrio

Não sou supersticioso nem iniciado em filosofias orientais como o Feng Shui, mas sempre que posso oriento as camas onde durmo para sul. O tempo cinzento afecta-me o humor, quebra-me o ânimo, e a sul há uma expectativa de sol, de bom tempo. Já aconteceu deitar-me com os pés para a cabeceira numa cama norteada apenas porque queria acordar bem-disposto. Saber-me de cara virada ao sol, ou orientado para latitudes onde a probabilidade de sol é maior, fornece-me a réstia de conforto que estar vivo exige. Por isso os quartos onde durmo, insensivelmente projectados sem orientação solar, têm por vezes aquele ar desacertado, de coisa fora do lugar (a cama).

Talvez esta fuga à mobilação prevista exerça a sua influência sobre as minhas ideias, a minha psicologia. Mas como disse, não sou supersticioso. Mesmo que tenha ficado preventivamente maldisposto quando me disseram que amanhã iria acordar com um dia de chuva. 

Janela

A casa onde vivi a infância só tinha uma janela pequena para a rua. Era ali que às vezes nos juntávamos quatro ou cinco dos irmãos, alguns empoleirados numa cadeira, para observar o mundo e as estrelas. No Verão havia o fascínio dos incêndios na serra em frente, e de Inverno o exame minucioso das mesmas encostas à procura de auspícios de neve. Era uma janela paciente, estava disponível se era dia de aborrecer a olhar a cortina de chuva ou se descia a banda numa manhã de Agosto em peditório para a festa. Desenhávamos-lhe nos vidros, à noite, no vapor da respiração ou na geada de Dezembro, caveiras sorridentes cujo efeito dramatizávamos apagando a luz do quarto e deixando que o candeeiro da rua as retroiluminasse e projectasse na parede ou no soalho.
Em certa ocasião, ainda os satélites não tinham rotas que cruzassem o bairro, julgámos detectar movimento numa luz celeste. Já sabíamos distinguir pelo bruxulear estrelas de planetas, mas aquele discretíssimo avançar no firmamento era algo diferente; podia ser, porque não?, um ovni. Mas era um ovni tão lento e circunspecto que apenas sabíamos que se movia aferindo ao longo da noite a distância à linha de cume da serra. Não porque perdêssemos a paciência, mas porque havia outros afazeres, revezávamo-nos na vigilância, e quem regressava ao posto depois de ter ido à cozinha percebia melhor do que os outros o avanço da nave alienígena. Estava claramente mais distante da serra depois de cada ausência.
Hoje é difícil acreditar que coubessem naquela janela tão pequena — além das estações do ano e da fenomenologia meteoro-teratológica, além das grandes tempestades e dos monstros mais assustadores — excitantes visitantes de Vénus com a sua sofisticada tecnologia. Mas cabiam. A revolução coperniciana só tinha roubado movimento ao Sol e a mais nenhum corpo celeste, incluindo os que não identificávamos. Nenhuma lei da física nos impedia de sonhar, e a exiguidade de uma janela não tornava pequena a ambição.
Se agora não conseguimos conceber como se ajustavam e fervilhavam ali tantas cabeças não é porque a janela tenha minguado, é apenas porque as nossas cabeças cresceram na razão inversa da nossa imaginação.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Deixem o pimba em paz? As artes e o público

À saída do espectáculo DEIXEM O PIMBA EM PAZ (uma reinvenção brilhante de Filipe Melo e Nuno Rafael a partir do hegemónico repertório pimba) alguém registou duas reacções dos espectadores: a dos que gostaram porque os novos arranjos eram música genial e a dos que gostaram porque dava para reconhecer as cantigas originais.
Estas reacções do público parecem demonstrar que é possível fazer arte consensual, ou mesmo arte de qualidade para uma imensa maioria. Dar-se-ia assim razão a Filipe La Feria, que terá dito na noite dos Globos de Ouro que «o segredo das casas cheias é o talento».

Mas é precipitada a conclusão sobre a consensualidade — e, claro, está infelizmente errada a afirmação laferiana. Se voltarmos às reacções daquele público, vemos que o que agradou aos mais exigentes (ou menos engajados no género) foi apenas a magnificência dos arranjos, a sua qualidade de coisa nova e boa em si mesma, e o que agradou aos fãs das canções originais foi uma certa resiliência da coisa pimba, o conforto da sua permanência no novo objecto artístico. Não há exactamente nisto um consenso estético.

Posição diferente, e mais perspicaz (ou honesta), da de La Feria tem um espectador do Theatro Circo, que, indignado, se queixava há dias na página de Facebook daquela sala que «tudo o que fuja 1 milímetro ao mainstream (quase) não tem público».

A recepção das artes, para a maioria das pessoas, tem muito menos a ver com méritos artísticos de criadores e intérpretes do que com factores externos, como a psicologia de massas. É muito menos uma questão artística do que sociológica, cultural (no sentido de educação, tradições, costumes, hábitos, rituais, valores, ideologia, preconceitos, imaginário, etc.). O espectador português não vai em massa aos espectáculos por interesses estéticos. Ou, dito de outro modo, a estética das multidões não é artística, mas, digamos, étnica, identitária, gregária. O espectador que integra grandes plateias vai aos espectáculos em busca de entretenimento, e vai também para se inscrever no grupo, se incluir no ritual, se saber parte da encenação social da comunidade, poder dizer também fuitambém estivetambém vi, também sou, faço parte. É o mesmo impulso emulador que leva o turismo de massas ao Algarve, ao Brasil ou ao resort na República Dominicana. Não é necessariamente a qualidade das praias que o leva ali, mas o conforto e a excitação de ir onde todos vão, de pisar onde os outros pisaram, de não ficar para trás, de não ser excluído, de não ser aquele que não foi, não esteve, não viu, não fez parte, aquele que não é. Um local ou um espectáculo são declarados objectos «de excelência» para um colectivo pelo mesmo mecanismo gregário que junta as pessoas em volta da Selecção Nacional em dia de vitória (antigamente era também na nave da igreja em dia de terramoto), ou que as põe a vestir em cada estação roupa igual sem lhe chamar farda ou uniforme.

Malgré La Feria, o talento artístico, portanto, tem pouco a ver com a presença massiva do público nos espectáculos — assim como a ausência do público não é geralmente uma posição estética ou crítica em relação a um espectáculo. No tempo de Shakespeare, ou na Lisboa de Garrett, o público ia em números significativos ao teatro, mas isso não significa que gostasse ou percebesse mais de teatro do que o público de hoje. Significa sobretudo que isso era o que a comunidade fazia com naturalidade naquela altura. Ia-se ao teatro, era o rito social. (E já então as pateadas e as aclamações conseguiam frequentemente não corresponder ao mérito das peças.)

Estas considerações não levam à conclusão de que o público é inepto, mas à de que, aglomerado em multidões, o seu critério se dilui, se transfere da apreciação estética para a aprovação social — e à de que é susceptível de manipulação, mais ou menos consciente ou maquiavélica. Talvez ainda haja encenadores ou produtores que contratam claques para aplaudir as suas peças ou patear as dos adversários, mas o campeonato já não se joga aí. As rivalidades entre criativos são, aliás, deste ponto de vista, ridículas: os criativos (se usarmos o termo também para adjectivar a classe) estão infelizmente todos do mesmo lado: o lado dos sem público (para dramatizarmos um pouco a coisa). Clássicos ou contemporâneos, apologistas do texto ou da performance física, indefectíveis do sentido ou niilistas absolutos, conservadores ou ferozes experimentalistas — não depende dos criativos ter espectadores às centenas ou moscas nas suas salas (continua a dramatização). A afluência em massa de espectadores não se fará pelo brilhantismo do que se apresenta no palco mas pela particularidade de o local, o espectáculo, ou algum seu protagonista terem sido eleitos instrumentos de inscrição social. As pessoas aparecerão numerosamente se sentirem que vão ali, divertir-se, é certo, mas sobretudo receber a bênção da inclusão, ser ungidas de visibilidade e aceitação, aparecerão se ali lhes for dada existência, uma existência de corpo celeste que orbita e depende da sua estrela. Este género de espectador, o género que pode constituir plateias numerosas, aparece num espectáculo um pouco como um concorrente no Big Brother: à espera de ser premiado por existir ou estar. Percebe-se que um e outro mantenham uma boa relação.

Um espectáculo que tenha uma figura do tal mainstream, famosa (famosa por exemplo pela sua proverbial falta de dons) corre muito mais o risco de esgotar do que um que tenha várias pessoas apenas talentosas. Mas isto continua a não ser suficiente para classificar o público de inepto, porque em rigor ele não está neste contexto a exercer função de público, não de público de artes. A sua atenção não está virada para o objecto artístico, mas para o comércio social. O público aparecerá para testemunhar o fenómeno, coleccionar a memória da experiência, sentir que não ficou de fora do rito — não para fruir uma melodia, um texto, uma interpretação.

Não sendo necessariamente inepto, o público que apenas funciona em massa também não é, todavia, curioso. E também isso explica a sua ausência de tantos espectáculos, como referia o espectador lá em cima. Este público não dá o benefício da dúvida a um espectáculo que ainda não tenha sido visto e aprovado por centenas ou não tenha em si os elementos que garantem essa aprovação, os elementos da previsibilidade (ou seja, um cúmulo de repetições e clichés). Este público não vai por sua iniciativa espreitar um jornal, um site, um cartaz ou um palco onde o que esteja em causa seja um espectáculo novo e não um espectáculo aclamado. O que naturalmente traz um problema para autores ou espectáculos ainda não sancionados por uma multidão, mesmo que excelentes.

Não estando disposto «a pagar para ver», a arriscar num espectáculo ou artista desconhecido, não procurando realmente experiências estéticas mas catarse social, e sendo incapaz de gerir o seu próprio cânone sem o submeter à validação geral, este público tende a confundir critérios estéticos com atributos não artísticos. O «renome» de um artista (cuja origem o público não investiga e cujo prazo de validade não verifica) substitui os seus dotes vocais ou coreográficos, a sua inspiração a cada novo trabalho; o género praticado por um par de vedetas é, por sinédoque, uma coisa boa, mesmo que os demais praticantes sejam medíocres; a «visibilidade» mediática é alvará superior ao diploma do conservatório, à opinião da crítica especializada ou ao arbítrio individual, pessoal; uma grande quantidade de visualizações ou testemunhos «promete» que a experiência será positiva e suspende desde logo o juízo próprio, garante por isso a posterior ratificação.

O segredo das casas cheias não é, portanto, o talento, mas o ter-se bafejado o objecto com o hálito saturado das multidões ou com o seu sucedâneo laboriosamente preparado pelos alquimistas de serviço.

E os alquimistas de serviço não são os criativos. Quem hoje manipula o público, para retomar a prática oitocentista referida atrás, não são os directores ou os donos das companhias. A «inscrição social» que alguma arte pode proporcionar e que a faz ser procurada por multidões, na sua freudiana necessidade de unção e integração, não está nas mãos dos criadores artísticos, mas nas dos media, sobretudo nas da TELEVISÃO. O pimba não sairia do relativo anonimato das feiras e romarias de província, como o fandango e a chula, se a televisão e Herman José não se tivessem apaixonado por ele. (Em contrapartida, também Filipe Melo e Nuno Rafael não teriam tido provavelmente vontade de aplicar o seu génio a material tão insípido e monótono se ele se tivesse mantido circunscrito.)

A televisão não é só the drug of the nation — é para as massas o árbitro da elegância. Ninguém pode esperar que o público seja massivo no teatro se o teatro está ausente da televisão.
E a influência da televisão é tanto maior quanto as elites, duma maneira ou doutra, participam dela.

Os GLOBOS DE OURO (como noutra dimensão os Oscares) são reconhecidamente um miserável Panteão das Artes, são uma cerimónia de pechisbeque de onde a crítica, o juízo estético e tantas vezes o mero bom gosto estão ausentes. Contudo, uma boa parte dos que não reconhecem autoridade à cerimónia passa a noite a acompanhá-la, pela TV, pelo Facebook, pelo Twitter, por sms, pelas informações de amigos. Esta elite de excluídos dos Globos (excluídos porque não foram convidados ou auto-excluídos porque os desprezam) fica de fora a gozar ao detalhe o acontecimento ou a odiá-lo como a um amor antigo — e participa assim do mecanismo de entrosamento ou coroamento social que ele constitui, porque a caricatura, o insulto ou o ressabiamento mal disfarçado entram no metabolismo do monstro, fazem-no crescer.

Os Globos de Ouro servem para ungir os premiados não necessariamente pelo seu mérito, mas pela conveniência que o acto acarreta. Conveniência para o canal. Alguns prémios são apenas a confirmação do critério (encontrar o premiado que valide a ideia, o conceito que se quer valorizar). Outros, frequentemente, são atribuições que, numa inversão de funções, procuram garantir notoriedade ao próprio programa e ao canal, procuram inscrevê-los socialmente. O árbitro quer definir o que é elegante — e quer que os elegantes lembrem a todos quem é o arbitro.

É esta espécie de tautologia que está na origem do afunilamento pimba das televisões. (Repare-se que pimba já não é apenas aquele género musical brejeiro e uniforme, é uma forma de estar, um amarfanhamento social que faz, por exemplo, com que se torne difícil distinguir, pelo lado do público, um concerto de Tony Carreira de um de Abrunhosa.) A existência de audiências fragmentadas por gostos, interesses ou divergências estéticas seria perigosa e dispendiosa para os canais televisivos. Perigosa porque estimularia mais o zapping, dispendiosa porque exigiria mais conteúdos, mais formatos, mais inventividade, mais inteligência, mais talento. O pimba não é necessariamente ou apenas uma simpatia natural dos proprietários e directores de canais — é o fruto do seu esforço para impor pelo facilitismo a marca e lucrar mais com menos investimento. O gosto único é, talvez, do ponto de vista das televisões, menos uma ambição ideológica do que um instrumento de economia. Em todo o caso, faz sempre parte de uma estratégia de poder.

E falar de poder remete-nos para o ESTADO. Que papel o Estado há-de reservar para si nesta relação difícil entre público e artes?
Antes de mais, o Estado deveria definir se lhe interessa ter um papel. Atendendo a que já não há mecenas (os mecenas, como se sabe, eram o Estado na Antiguidade Clássica e na Renascença, já que de uma forma ou de outra viviam dos rendimentos que obtinham do povo), atendendo a estas circunstâncias, eu diria que sim, que ao Estado interessa ter um papel, mas eu sou um antiquado, um conservador. Tomemos o estado de direito, por exemplo. O estado de direito é uma coisa dispendiosa, não dá lucro, mas é talvez a maior conquista civilizacional da humanidade. Nenhum governo, por mais bruto que seja, se atreveu (para já) a considerar o estado de direito obsoleto ou a achar que o ministério público e os tribunais deveriam ser privatizados, financiados pelos que os demandam, sem qualquer participação do Estado. Ora, as artes e o direito caminharam, historicamente, ombro com ombro. Dialogam intimamente, do ponto de vista filosófico. A capacidade de abstracção, o sentido crítico, o debate, a independência de raciocínio e de opinião, a criatividade, a imaginação, tudo isto que nos trouxe ao século XXI são características que a humanidade apurou com o tempo e que de algum modo foram também estimuladas, potenciadas, exercitadas pelas artes. Seria um pouco pretensioso (e perigoso) da nossa parte achá-las agora dispensáveis.

O Estado, de forma activa ou por interposta legislação, com maior ou menor convicção, é (tem de ser) o garante último da biodiversidade, da preservação da memória, dos direitos das minorias e da alternativa democrática. Se não tivermos outras ideias para as artes, diria que no mínimo devemos encaixá-las nestes conceitos, tê-las em conta do ponto de vista ecológico (criando «reservas territoriais» onde elas possam medrar), do ponto de vista social (garantindo um rendimento de sobrevivência para intérpretes e espectadores, podendo estes ser providos em géneros pelos primeiros), do ponto de vista histórico-patrimonial (desenvolvendo uma política de «património vivo» para salas de espectáculos e galerias) e do ponto de vista político-filosófico (assegurando a possibilidade de propostas alternativas e o direito democrático à livre escolha, à escolha livre de proselitismos televisivos).

Ironias à parte, que tipo de reflexão deve o Estado fazer sobre as artes e o público? Perante a constatação de que não vão multidões ao teatro, uma reflexão sobre artes não deveria concluir que o teatro deve ter menos apoios (nem aumentar o IVA dos bilhetes). Do mesmo modo que aos governos preocupa a abstenção (pelo menos envergonham-se de confessar que não preocupa), devia preocupá-los a ausência de público no teatro. A qualidade de uma democracia sai talvez prejudicada se as pessoas não votarem, mas a qualidade do voto sai prejudicada se as pessoas não tiverem uma relação íntima com as artes e o pensamento informado e crítico que elas estimulam. Uma reflexão sobre artes, portanto, debruça-se sobre como levar mais público ao teatro.

Um governo não é um canal de televisão. Não pode ter como objectivo uniformizar a sociedade para melhor a governar e para governar mais barato. Governar mais barato pode ser uma triste necessidade, não uma aspiração. Daí que a um governo que queira ser realmente útil não possa deixar de se colocar duas questões: como levar mais público às artes (ou seja, ao pensamento crítico) e como (que é quase o mesmo) contrariar o proselitismo pimba das televisões.
A resposta à segunda questão passaria por açaimar ligeiramente, legislativamente, as TVs, mas isso é certamente pouco democrático e pouco liberal.
A resposta à primeira questão, que a prazo também responderia à segunda, reside em grande parte no ensino, essa instituição que o Estado (para já) ainda controla.

Com a entrada do ministro Crato, um intelectual que quase toda a gente estimava, o ENSINO ficou ainda mais de costas voltadas para as artes. (Foi assim com este governo, transformou desde o início pessoas interessantes em factótuns da política bulldozer.) Mas em rigor não é o actual ministro que deve ser culpado por o ensino não educar as crianças para as artes, para a estética, para a literatura, para o pensamento crítico. O mal é antigo. Na ausência de uma boa política institucional, as escolas foram deixadas à livre iniciativa (o que só por si não é um mal e em muitos casos teve resultados positivos) e essa ausência de enquadramento conduziu geralmente ao voluntarismo. A ênfase passou em poucas décadas de levar acriticamente os miúdos ao teatro, por exemplo, de os deixar enfiados e contrariados durante uma hora numa plateia a ver o que quer que fosse, para a originalidade de os levar directamente para o palco, ainda mais acriticamente e com frequência sem qualquer relação com a sua vocação. Há hoje no país centenas ou milhares de crianças que estiveram mais vezes num palco (calorosamente ovacionadas, e por isso induzidas em erro, pela família e os amigos) do que numa plateia, e em tantas das ocasiões em que estiveram na plateia estiveram a ver e a aplaudir sem critério crianças como elas. O equívoco tem as suas raízes antigas no pensamento muito esquerdista e igualitarista de que todos temos talento, todos temos criatividade, todos temos um poeta ou um bailarino dentro de nós. Depois foi continuado pela bigbrotheriana ideologia, ainda mais «democrática», de que todos temos direito à fama, mesmo que não façamos absolutamente nada para a merecer. A televisão, claro, contribui fortemente para isto, com as suas chuvas de estrelas, os seus inesgotáveis programas de talentos, e, não raro, os seus shows para macaquinhos de imitação.

Como resultado desta soma de equívocos — nem todos conscientes ou mal-intencionados, conceda-se — temos hoje grandes fragmentos geracionais que não sabem distinguir o mérito, o talento, a criatividade, a originalidade. Que não conhecem a história das artes nem têm com elas qualquer relação intelectual ou de afecto. Que «detestam» figadalmente o que não conhecem (e é quase tudo) e idolatram qualquer frivolidade que se pareça longinquamente com o «talento» e o gosto promovido pelas TVs.
Há muitas excepções a este cenário miserável, mas o ensino não devia viver apenas de iniciativas individuais (e difíceis, desprezadas) de professores esclarecidos e esforçados.

As artes no ensino não são importantes porque, na tal perspectiva laferiana, podem assegurar «casas cheias» no futuro (as estatísticas são outro equívoco), não é esse o ponto. A formação artística que o ensino pode e deve proporcionar não deve estar necessariamente focada em criar «públicos» (isso será um resultado natural) nem em criar artistas (a vocação não se incute). Prioritárias a isso tudo são a sensibilidade, o espírito crítico, a capacidade de abstracção, a autonomia de pensamento e o conhecimento, para os quais as artes são um veículo útil.

As artes não se fruem sem uma boa parte de individualidade, de concentração, de existência intelectual própria e capaz de se alhear dentro de si mesma pelo período de um andamento musical, de um monólogo, de uma sequência coreográfica, de um capítulo de um livro. Infelizmente as escolas não favorecem isto (que por natureza não é fácil) e o resultado é termos já hoje uma ou duas gerações que não se imaginam fechadas numa sala por uma hora sem poder conversar e gritar, sem trocar sms, sem fumar um cigarro ou beber um copo. As salas de cinema renderam-se a esta forma de estar e a própria Hollywood produz há muito filmes que não exigem atenção permanente ou perspicácia. Nos teatros, os espectáculos de massas são geralmente as comédias, os musicais ou os concertos, produções, que, se não dão para o cigarrito e a mini, sempre permitem a interacção na plateia e com o telemóvel durante as representações.

Face a tudo o que ficou dito, o maior paradoxo é que talvez nunca como hoje Portugal tenha tido nas artes tanta gente talentosa, criativa, cosmopolita, com bom gosto e formação sólida. Enquanto nação, não estamos à altura dos nossos actores, bailarinos e músicos.