quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Salgueiro Maia do Pátio das Cantigas (2): o “Movimento dos Capitães”

(parte 1)

As fisgas que tínhamos no Clube não eram fisgas de atirar pedras, feitas de uma galha; eram mais pequenas (5-6 cm de comprimento), destinadas a outros projécteis, e eram exemplares perfeitos do desenrascanço urbano.
A estrutura em “Y” da fisga era feita de arame grosso roubado à ponta de um estendal da roupa. À volta desta estrutura de base enrolávamos depois, laboriosamente, fio eléctrico fininho, conseguido nas sobras da estação automática dos CTT, vizinhos do Pátio das Cantigas, o que não só dava à fisga um pouco mais de rigidez, mas também tinha um belo efeito cromático, devido às cores garridas dos isoladores. O fio servia ainda para prender o elástico, pedinchado aos balcões das agências bancárias existentes do outro lado da Avenida Carvalho Araújo. Em vez de pedra, disparávamos «grampos», pedacinhos de 1 cm do mesmo fio eléctrico dobrados em “U”.

A árdua tarefa de fabricar as nossas fisgas e os respectivos grampos era uma parte importante da vida do nosso Clube, mas, como disse no fim da primeira parte, foi por aí que chegou o descontentamento, a dissensão e, finalmente, a Revolução.

O problema foi que, a dada altura, eu e o Nuno nos apercebemos de que, depois de todo aquele trabalho, praticamente o único que disparava as fisgas era o Carlitos. Para piorar as coisas, a dificuldade em arranjar fio de cobre ditava a constante escassez de grampos, pelo que uma tarefa ainda mais árdua, e muito menos divertida do que fazer fisgas, era a de passar horas de rabo para o ar a catar do chão do Pátio os grampos anteriormente disparados — actividade a que o Carlitos, denotando já naquela tenra idade todos os tiques das chefias lusas, se furtava olimpicamente.
A constatação da injustiça levou-nos, ao Nuno e a mim, a optar inicialmente pela greve e a resistência pacífica, recusando-nos à servidão a que se sujeitavam o Sílvio e meu primo, sob a torreira do sol do Verão transmontano. Até que decidimos passar à conspiração activa.

Num dia em que o Carlitos estava ausente, convocámos os dois mais novos para uma reunião secreta. (A Teresa ficou de fora, pois era uma luta que lhe passava ao lado: mais interessada nas suas prelecções gramaticais do que nas artes da balística, não disparava a fisga mas também não mourejava na preparação do arsenal.)
A reunião permitiu constatar o que já prevíamos: o descontentamento era generalizado. No entanto, o Sílvio e o Jorge Miguel hesitavam em seguir os nossos apelos de passagem à acção, com medo do Carlitos. Eu e o Nuno esforçávamo-nos na retórica motivadora:
— Isto tem de acabar! As fisgas e os grampos são de todos!
— O Carlitos é um explorador, um ditador!
— É um facho!
— Temos de fazer um 25 de Abril!

Qual Salgueiro Maia na parada da Escola Prática de Cavalaria na madrugada do dia histórico, o nosso discurso galvanizador conseguiu convencer o Sílvio a juntar-se a nós. E por aí se ficou o nosso sucesso, ao contrário do de Salgueiro Maia: o meu primo, o mais novo de todos, persistiu na medrosa recusa em participar, mas comprometeu-se ao silêncio, sensível aos nossos argumentos:
— Ou te calas ou levas!

A Revolução estava em marcha.


(Conclui amanhã.)

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